"Finalmente nós podemos vir a entender: o ponto não é que não podemos libertá-las porque seu programador controla as opções delas; o ponto é que nós esperamos desesperadamente (ou pelo menos deveríamos esperar) que ele realmente faça isso."

Roberto Simanowski

SIGNIFICADOS DO ANIMISMO

por Roberto Simanowski
Tradução de Alexandre Venera

 1. Animais selvagens e criaturas artificiais

Antoine Schmitt introduz sua coleção de seres programados em "avec determination" como "criaturas silenciosas, lutando bravamente contra seu próprio meio ambiente, do qual nós somos parte". Assim, ele elege uma perspectiva filosófica para abordar o seu trabalho, a qual em si mesmo é, em primeiro lugar, nada mais do que pura matemática. A respiração e o sangue dessas criaturas abstratas são um conjunto de equações matemáticas que não só determinam a aparência das criaturas, como também seus comportamentos e intenções. Diz Schmitt em sua introdução:

"Eu forneço motivação para as criaturas, que é a força que dirige os músculos e faz com que elas se movam em direção a uma certa meta. Por exemplo, levantar-se. Essa motivação, que também é implementada com um algoritmo, ativa os músculos de acordo com a troca entre a meta e a percepção que a criatura tem de sua própria posição e movimento (cinestesia), seguindo um princípio conhecido em cibernética como "teleologia prognosticada por reação negativa."
(http://www.gratin.org/as/avecdetermination)

As criaturas de Schmitt percebem logo o conflito entre a sua meta de se mover e os limítes físicos da caixa. Elas estão aprisionadas a uma situação desesperada, reminiscência da situação de Sísifo. Considere-se a criatura em "Stepping" que está tentando manter um controle dos seus próprios pés para poder caminhar. Muitas vezes ela bate a cabeça nas bordas da caixa, cai sobre seus joelhos, mas nunca perde o que nós deduzimos como sua coragem ou instinto para sobreviver, apóia-se novamente nos seus pés só para encontrar os mesmos confinamentos. As criaturas de Schmitt são condenadas a permanecer numa gaiola. Em vez de conquistar um território novo, elas só exploram seu próprio desamparo. A pantera enjaulada descrita por Rainer Maria Rilke em 1907 vem à mente; é ela que espreita, a cada dia, incessantemente, permanecendo próxima às barras da jaula, que se tornaram o mundo dela.

Der Panther

Sein Blick ist vom Vorübergehn der Stäbe
so müd geworden,daß er nichts mehr hält.
Ihm ist, als ob es tausend Stäbe gäbe
und hinter tausend Stäben keine Welt.

Der weiche Gang geschmeidig starker Schritte,
der sich im allerkleinsten Kreise dreht,
ist wie ein Tanz von Kraft um eine Mitte,
in der betäubt ein großer Wille steht.

Nur manchmal schiebt der Vorhang der Pupille
sich lautlos auf -. Dann geht ein Bild hinein,
geht durch der Glieder angespannte Stille -
und hört im Herzen auf zu sein.


A Pantera

De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.

(tradução de Augusto de Campos)

A Pantera de Rilke estava no "Jardin des Plantes" em Paris; e as entidades de Schmitt foram criadas em algum lugar num computador em Paris. Porém, não considerando essas alusões acidentais e sem significado, pode haver uma relação mais profunda entre ambas.

2. Objetos e Observadores

Tanto a pantera como as criaturas programadas são confrontadas com as limitações de movimento. Ainda assim elas experimentam suas limitações diferentemente.Tenha sido a pantera trazida da selva para o zoológico, ou nascido nele, ela sente a impropriedade desse espaço, que não é o local certo para exercitar seus músculos, mas somente os esgota através das grades que a reprimem. O que dizer sobre as criaturas artificiais de Schmitt? Nós sentimos que elas se sentem como se existissem no lugar errado? A força delas está reprimida como a da pantera? Não somente essas criaturas, mas também aquelas para quem elas se levantam.

Como a pantera de Rilke, as criaturas de Schmitt têm a vida dupla de um símbolo. Elas representam o que elas são: uma pantera aprisionada num jardim zoológico e uma criatura programada, capturada numa caixa. Elas também significam aqueles que estão olhando para elas, porque os observadores têm suas próprias grades.

Naturalmente, os visitantes do zoológico dificilmente sentem-se inclinados a observar a pantera e a vida dela e compará-la com as suas. Em vez disso, eles sentem um senso de domínio e gostam de ver a criatura perigosa reduzida a um objeto tranqüilo, familiarizado numa parte igualmente domesticada do "Jardin des Plantes", em vez de buscá-la em seu próprio domínio. A experiência no jardim zoológico substitui a experiência real, como fazem as mídias como os livros, jornais, e os cinemas, os quais, na hora da poesia, já desempenharam um papel importante de apresentar o exótico na posição segura de consumo (visual). Embora essa substituição seja exatamente o que os visitantes do zoológico confortavelmente têm, isso reflete a própria vida confinada dessas pessoas. Estão limitadas aos seus próprios medos e posição social, os quais lhes permitem adquirir uma experiência simbólica. O pequeno círculo, a vontade paralisada, os olhos cansados - eles são irmãos do prisioneiro deles. Os visitantes serão igualmente aprisionados no "website" de Schmitt?

Há uma diferença entre esses visitantes de"website" e aqueles que visitam o jardim zoológico. Enquanto que os últimos não podem influenciar a situação - se alguém negligencia provocando a pantera atrás das grades com gritos ou gestos selvagens -, os primeiros são capazes de interagir com as criaturas programadas. Podemos acelerar o movimento dessas criaturas, podemos dirigi-las para a direita, esquerda, acima, ou abaixo, nós podemos esmagá-las contra a parede. Em contraste com os visitantes do zoo, não somos "espectadores impotentes" assistindo a uma luta infinita, como Schmitt sugere na introdução da sua obra. Ele está correto ao dizer que não podemos ajudar nessa luta, mas apenas perturbá-la mais ainda ao mover o mouse. Porém, nossa interação e interferência nos transformam de meros espectadores em uma parte do cenário. O próprio Schmitt chama a interação "só uma ligação mínima entre a realidade delas e a nossa". Eu considero o "link" como uma ligação a ser mais significativa do que Schmitt nos faria acreditar, pois ela nos põe nos sapatos delas, como se diz. Nós somos essas criaturas, que estão "lutando contra seu próprio meio ambiente, do qual somos parte", como disse Schmitt. Nós somos a pantera. Tão artificiais quanto elas são, essas criaturas contam nossa história de tentar desesperadamente deixar a caixa. Porém, o que é a caixa?

3. Pensando a Caixa

Há muitas coisas que nós podemos relacionar com esse signo. Um pensamento que vem à mente muito facilmente é o sistema social. Dessa perspectiva, a figura "Not Moving" pode ser considerada uma que aprendeu sua lição: ela não almeja sair. Só nos olha, enquanto se move de um modo muito elegante, como se fosse para ser recompensada pela sua obediência, e não pode ser esmagada contra a parede, nem no nível horizontal, nem no vertical. É como um exemplo de educação social: você não será magoado mais uma vez se aprendeu a comportar-se dentro do sistema, considerando que essas resistências vão se encaixando como a última figura na coleção de Schmitt (essa seria uma maneira de ver ordem na apresentação de Schmitt, se ele não substituísse, de tempos em tempos, as suas criaturas mais velhas).

Partindo da metáfora toda muito simplista da caixa como símbolo para o sistema social, nós podemos pensar na caixa como linguagem (de que se constitui o sistema social, enfim) ou como "software", a linguagem de programação. Afinal de contas, essas criaturas na caixa são o resultado de equações matemáticas. Elas são produzidas por um ser humano, como você e eu, com a exceção de que ele ou ela sabem escrever essas equações. O programador é o pai real dessas criaturas, o Deus que decidiu fixá-las na caixa como algo com as quais nós podemos brincar. Nós realmente queremos que essas criaturas sejam libertadas?

Essas criaturas ficarão na caixa como a pantera ficará atrás das grades. E, mesmo assim, a presença delas nos traz prazer e ansiedade porque caixas e grades nunca são completamente seguras. A pantera nas ruas da nossa cidade é igualmente um pesadelo como o "software" que vaga na rede. Nós queremos a pantera e o "software", mas os queremos sob controle. Antoine Schmitt deixa claro que nós não temos esse controle. Colocando os usuários como impotentes, ele quer enfatizar, por meio disso, com veemência, que somente ele, o Deus programador, tem controle. Que ele estabelece as regras é sublinhado pelo fato que nosso movimento de mouse à direita ou para cima inesperadamente move as criaturas à esquerda ou para baixo e vice-versa. Mas o fabricante da regra permanece com controle de tudo?

Nós não estamos realmente certos disso. Há essa experiência com poder nuclear e há esse medo da manipulação genética. Há esse medo da vida artificial e há esse horror de não ficar livre dos fantasmas citados anteriormente, como é o caso do poema "Der Zauberlehrling") ("O Aprendiz de Feiticeiro"), de Friedrich Schiller. Todas essas facetas de crítica de cultura podem ser aplicadas às criaturas artificiais de Schmitt como se divertidamente tentássemos libertá-las. Finalmente nós podemos vir a entender: o ponto não é que nós não podemos livrá-las, pois seu programador controla suas opções; o ponto é que nós esperamos (ou pelo menos deveríamos esperar) desesperadamente que ele realmente faça isso.

Afinal de contas, o que é novamente a caixa? Além da gaiola para esses que são aprisionados nela, a caixa representa nossos próprios limites. Limites em nossa vida, os quais querem a pantera no "Jardin des Plantes", mais do que nós mesmos na selva, e limites em nossos empreendimentos que nos permitam programar coisas, mas nunca assegurar a meta. Todos nós experimentamos nossos limites quando usamos a grata ajuda do mágico para instalar um programa novo em nosso computador. Não me pergunte o que acontece quando eu clico "ok". Algo acontece - e eu sempre apenas espero que o mágico mantenha a pantera dentro da caixa.


4. Espetáculos e Significados

As peças “avec determination” de Schmitt são impressionantes de vários modos. Alguém pode olhar para o movimento e tentativa dessas criaturas para deixar a caixa. Uma pessoa pode se envolver e pode ser tentada a ajudá-las a ter sucesso ou só experimentar seu próprio poder sobre elas. Alguém pode finalmente considerar o que isso tudo pretende significar.

Assim, o projeto de Schmitt - separadamente do prazer visual e da programação sofisticada - provê significado atrás do espetáculo de superfície. É um exemplo de "software-arte" — como Lev Manovich o descreve no ensaio “Generation Flash”—, que não é apenas código de trabalho bem feito com um "design" de tela cintilante e uma interação divertida, mas também traz uma mensagem de valor para ser contemplada. Que essa mensagem possa ser entendida diferentemente e nunca ser alcançada em seu fim é algo que sabemos e que esperamos da arte, em contraste com "slogans" em um manifesto.

As peças de Schmitt são agradáveis de vários modos. Olhar para essas criaturas e os seus jeitos diferentes de se moverem — ou se preferir, de dançarem — e olhar como os seus corpos reagem diferentemente quando elas encontram a borda, tentar entender a coreografia atrás da dança, tentar influenciar, tornar-se amigos e as imaginá-las fora da caixa, soltas, no seu disco rígido, por exemplo, e tentar sorrir, enquanto pensa nisso.

SIGNIFICADOS DO ANIMISMO

por Roberto Simanowski
Tradução de Alexandre Venera

 
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Co-publicado em fevereiro, 2003, Nova Iorque, Rio de Janeiro, Berlim, Toronto.