... "nurb " é poético ao ponto de mostrar-se fascinante com a materialidade gráfica da inscrição, e com as suas mais fundamentais unidades: as letras.
O que servovalve desenvolve é a visão de que, em seu último nível de decomposição, uma letra é um conjunto de linhas horizontais, verticais, oblíquas e curvas, e que uma imagem, no mesmo nível de decomposição, é um conjunto de letras similares a linhas, que depende das mesmas formas lineares e curvas que as letras de uma linguagem.

O poema como objeto cinético e visual: o Nurb de servovalve por Carrie Noland
Tradução de Alexandre Venera

Eu quero começar evocando uma cena que é familiar a muitos de nós que temos filhos pequenos. Em um quarto artificialmente iluminado, uma criança pequena senta-se no chão ou à escrivaninha, o corpo dela se dobra, pendendo a cabeça para a página à sua frente, ela aperta no punho um instrumento de escritura. A criança está tentando escrever letras. A concentração da mente e do corpo é impressionante, enquanto que a quietude e a atenção estranhamente em ação. A criança deseja fervorosamente aprender a escrever e, provavelmente, também aprender a ler as letras do alfabeto.

Os psicólogos infantis estimam que uma criança americana gasta a maior parte do tempo, entre as idades de 5 e 8 anos, dominando os rudimentos destas artes culturalmente privilegiadas [1]. Alfabetizar-se é um processo doloroso e árduo, uma disciplina no sentido mais forte da palavra. Não é por acidente que a aprendizagem da alfabetização se apresenta na obra de Michel Foucault, "Discipline and Punish", na qual o corpo cinético é produzido pela tarefas que ele é chamado a desempenhar [2]. Embora o interesse de Foucault esteja no século XVII, o cenário que descreve é aplicável também aos nossos tempos. A habilidade da caligrafia correta era uma das muitas encenações da disciplina corpórea que surgiram durante o século XVII, um período tão implacavelmente dedicado a padronizar o incontrolável, o corpo libidinoso. Não só as mãos e os dedos eram cuidadosamente coreografados pelos vigilantes instrutores de ortografia, mas cotovelos, coluna, pés, e até mesmo o estômago, também, eram forçados a coordenar os seus movimentos e manter posições pré-determinadas e convencionalizadas entre um e outro.Um corpo bem disciplinado forma(va) o contexto operativo do menor gesto" , disse Foucault , e assim, a boa caligrafia durante esse período — e, evidentemente, também no nosso — pressupõe uma ginástica, toda uma rotina cujo código rigoroso envolve todo o corpo, desde a ponta dos dedos dos pés até o extremo do dedo indicador [3].

Aprender a ler, segundo descobriram os cientistas do conhecimento, não é menos rigoroso; ler produz um impacto no corpo — e também na mente — que os investigadores de diversas áreas estão ainda tratando de compreender [4]. Um estudo realizado nos anos oitenta demonstra que aprender a ler, apesar de ser uma atividade que normalmente requer menor esforço corporal do que aprender a escrever, na realidade tem efeitos de longa duração no sistema nervoso, não limitados somente aos momentos consumidos durante o ato de leitura [5]. Por exemplo, os movimentos oculares de um menino que recém começa a reconhecer as letras são completamente erráticos; o olho corre para cima e para baixo, para o lado, em ângulos oblíquos num padrão que se assemelha ao de se examinar um extenso campo de informação visual. Em outras palavras, a criança olha da mesma maneira para um texto como ela olha para um desenho, ou para o próprio mundo. Os movimentos oculares não foram ainda domesticados, regulados, disciplinados para acomodar um processo eficiente de leitura. Porém, quando uma criança aprende a ler mais depressa, os movimentos oculares entram em um padrão firmemente restrito, flutuando numa gama cada vez menor de sobe e desce, e quase nunca deslizando para os lados. Esse controle aprendido dos movimentos oculares, ainda que inconsciente e involuntário, acompanha a aquisição cognitiva das habilidades de ler. E essa alteração do corpo físico, o corpo cinético, e o próprio sistema nervoso, é permanente. A criança pode agora "ler" de acordo com um padrão mais preciso, ainda que limitado, de recuperação de informação visual.

Cito esta experiência para tornar claro que a leitura é um gênero de treino que não só produz um leitor, mas também produz um texto. Em outras palavras, as letras na página que são confrontadas pelo analfabeto ou pela criança pouco alfabetizada não são as mesmas letras na página que são confrontadas pela criança alfabetizada. As letras antes eram linhas e formas além de letras. Elas eram casas e árvores e cobras antes de serem "agás", "tês" e "esses". Eram desenhos antes de serem as partículas de palavras, ícones antes de serem sinais, porque é como o olho as viu. O olho em movimento, errante, ocupado, intuitivo, o olho curioso e faminto, ainda não sabia para o que estava olhando, ainda não sabia olhar para o que estava olhando. O olho físico ainda sem treino, não havia se convertido num olho treinado, aculturado, e o texto não era um jogo conjunto estático de letras mas ao contrário uma movimentação, animada, que se auto-transformava de tela em imaginação.

Como Joan Brooks McLane explica em "Early Literacy", as crianças pequenas não distinguem entre desenhar e escrever. E, na realidade, como os pedagogos agora reconhecem, muitas habilidades de "pré-alfabetização" são adquiridas por meio de atividades imaginativas que envolvem pintura, creions, marcadores mágicos e jogos de imaginação [6]. Os pesquisadores sabiam há muito tempo que as tentativas de crianças mais novas para escrever tomam a forma de garatujas, rabiscos seminais que tanto podem conduzir ao caráter embrionário de uma linguagem, ou, alternativamente, para as representações pictóricas, letras ou linhas [7]. A teleologia da cultura demanda que nós vejamos a aquisição da escrita pela criança — e portanto a sua redução de linhas para letras e de representações pictóricas para caracteres — como um progresso. A criança aprendeu a ler; os olhos se acalmaram; e de agora em diante passará a maior parte de sua vida adulta lendo e escrevendo textos em vez de visualizar ou fazer desenhos.

E, pelo menos para os autores de textos, isto é uma coisa boa. Afinal de contas, autores precisam de leitores. Raramente existe um autor — e aqui meu foco estará nos autores de poemas — lamentando a aquisição da capacidade de ler, pois, para ser entendido e apreciado, o texto requer o domínio específico dos tipos de disciplina que terminam por desvalorizar ou eliminar completamente as propriedades cinéticas e visuais das marcas na página.

O que é tão revolucionário em poesia digital, em contraste com as poesias do passado, é o grau extraordinário para o qual ela insiste sobre aquelas mesmas capacidades que, ou estavam perdidas, ou meramente suprimidas no nosso "progresso" em direção à alfabetização. Semelhante neste aspecto às poesias visuais e concretas, a poesia digital também redesperta o olho, encorajando-nos para que experimentemos a letra como uma unidade visual. Porém, a poesia digital vai ainda mais longe ao transgredir o limite entre o assunto e significado, desenho e inscrição. Integrando animação, os poemas digitais restabelecem nas letras as cineses que haviam apreciado anteriormente [8]. Em muitos poemas digitais, as letras se movem; elas são deslocadas, surgem em qualquer ponto na página/tela, dessa forma reinventando seus suportes como campo ilusionista e tridimensional, ou como um filme, que se desenvolve no tempo. Como afirma elegantemente Stéphanie Strickland, trabalhos digitais desempenham o "cúspide do ver / ler"; "considerando que o som sobrepondo outro som cria um novo som", ela observa, "e a imagem sobre a imagem faz uma nova imagem, o texto alfabético, superposto a outro texto alfabético ou imagem, não produzirá um texto legível confiável. … vacilamos entre ver o visível e ler o legível" [9].

É especificamente essa "tremulação" ou "oscilação" entre os dois diferentes modos fenomenológicos distintos de uma inscrição ser - visível ou legível - que o artista francês, servovalve, está explorando no trabalho intitulado "nurb", — para o qual me voltarei agora.

Para os menos familiarizados com as recentes inovações em poesia digital, eu quero primeiro fornecer uma classificação geral e rápida. Nem toda poesia digital enfatiza o visual ou os aspectos cinéticos das letras. Há um grande grupo de trabalhos que não é mais do que poesia imprimível, mas que está publicada "on-line". Por exemplo, um "website" como "ubu.com" que reúne fielmente e "publica" on-line a poesia inovadora mais interessante desde o princípio do século XX até o momento atual. Mas muitos destes trabalhos não tiram proveito da mídia digital. Uma segunda categoria de poesia digital seria a dos poemas distribuídos na "web", que não foram publicados antes, e então tiram proveito da imediação e ampla disseminação que a "web" provê, mas no entanto não empregam quaisquer das outras vantagens da mídia digital. Qualquer processador de textos poderia produzir esses tipos de poemas em "softwares" onipresentes como o "Microsoft Word". (E a gente pensa aqui em Alan Sondheim que distribui vários poemas por dia numa lista de "email" criada por Jim Andrews, chamada "Webartery"). Poemas compostos com HTML, DHTML ou com a manipulação de código Javascript, constituem a terceira categoria de poesia digital. Esses poemas ou são gerados jogando com o código de uma maneira intencional (produzindo efeitos pré-concebidos de um modo controlável) ou programando um algoritmo e vendo os resultados textuais aleatórios.

A quarta e a mais ampla categoria de poesia digital é a que eu quero focalizar aqui. Embora me limite a uma discussão de poesia digital FRANCESA, deve ser entendido que os poemas que estou examinando fazem parte de um corpo transnacional de trabalho que evolui com o passar do tempo, dentro de uma tradição de manipulação textual inovadora que só está começando agora a se teorizar (construir uma poética) e se arquivar (ao se considerá-las como cânones). Esta quarta categoria é a que eu chamarei de poesia digital "animada". Os trabalhos nessa categoria geralmente empregam um dos dois programas de animação de "software" mais facilmente disponíveis: "Flash" ou "Director". O "Director" foi o primeiro a aparecer em cena em 1987 (seguido pelo "Flash" em 1996 ou 97). Ambos permitem aos usuários fazer as letras moverem-se na tela, transformações mórficas, trocar de tamanho, fonte e cor. Também permitem aos espectadores interagirem com o "texto", transportando palavras ou letras de um lugar para outro na tela ao arrastar o "mouse", ou fazendo-o desaparecer e reaparecer num clique do "mouse". Poemas digitais animados com "Flash" ou "Director" tendem a se assemelhar a filmes animados curtos nos quais as palavras ou letras se movem como personagens de desenhos animados.

Um exemplo relativamente sofisticado seria "La Poésie est la somme" , de Philippe Castellin, no qual as palavras da mesma fonte mas com diferentes cores — como "infini," "l'étroit," "toujours," "formes," "l'intérieur" e assim por diante (e também o nome do autor e a data da composição - 1999) — fazem o poema flutuar ao redor da tela em direções e a um ritmo determinado por um algoritmo pré-programado. As palavras - todas escritas em maiúscula - circulam durante algum tempo, então deixam de se mover abruptamente e permanecem paradas durante três segundos, só o tempo suficiente para criar uma impressão visual no espectador, mas não longo o bastante para que o texto seja legível. O espectador responde à qualidade cinética das palavras brilhantes seguindo o movimento delas com os seus olhos, traçando assim uma variedade de caminhos ópticos que um texto "normal" nunca produziria. A resposta apropriada ao texto se vê desafiada, desfeita pela adição de animação. Quando as palavras deixam finalmente de se mover, o espectador sente um tipo de "insight" do todo até quando sua atenção se focaliza, talvez, em uma ou duas palavras que tremeluzem até se tornarem legíveis. Assim, o poema nunca parece conter as mesmas palavras duas vezes, e o aspecto visual em sua totalidade nunca se soluciona em uma entidade estável. Presumivelmente as permutações da sintaxe, o conteúdo, e o aspecto visual do poema são ilimitados. . O espectador é "leitor", de certo modo, mas também tem que ir lutando além dos hábitos adquiridos de ler para dar sentido ao texto — como objeto visual e cinético — que recusa a se resolver, no que Paul de Man poderia ter chamado uma "metáfora totalizante," permanecendo compreendido em uma extensão metonímica aparentemente ilimitada [10].

O programa de "software" mais complexo, "Director", produz resultados que apresentam até um desafio maior aos hábitos adquiridos pelo espectador alfabetizado. Enquanto o "Flash" cria animações simples, semelhantes a essas usadas para títulos de filmes, por exemplo, o "Director" pode ser usado para programar seqüências de larga duração que envolvem uma maior variedade de transformações de caracteres e a sua interação com imagens [11]. O "Director" geralmente é empregado quando um autor quer esmaecer a distinção entre texto e imagem. Este esmaecimento, é claro, acontece logo que as letras começam a flutuar, revolver, vibrar, ou a deslocar-se (tanto por procedimentos interativos como por códigos pré-programados). Mas podem ser alcançadas permutações mais dramáticas de texto, quando a transição entre uma linha e uma letra acontece suavemente num espaço de tempo contínuo. As animações "Flash" tendem a sacudir-se e saltar quando as letras aparecem e da mesma maneira de repente desaparecem, ou "piscam" ao entrar e sair da tela. Ao contrário, as animações "Director" exploram a continuidade que podem alcançar entre uma fase do aparecimento de uma letra e a próxima.

Ambos os tipos de animação compartilham porém uma tendência para privilegiar a letra sobre a palavra como o elemento predominante da composição. Jim Andrews, um artista da "web" canadense explica:

"Faz muitos anos que a poesia visual me atrai, particularmente a poesia visual "letrista" que trata de sílabas e letras em oposição às palavras, frases e orações… porque no reino digital as formas de letras são mais variadas do que as formas de palavras que tendem a se prolongar em retângulos. E, para um programador, uma letra é tipicamente uma coisa contínua na qual várias transformações / animações são visualmente mais atraentes e sugestivas do que as palavras inteiras ou orações. As letras são personagens. Elas têm mais caráter do que as palavras [12]."

Assim, um artista gráfico — tal como Andrews — provavelmente concentra mais recursos de programação nesses elementos de idioma escrito e que têm interesse visual: de acordo com isso, a maior variedade do "caráter" gráfico das letras as coloca adequadamente em proeminência na poesia digital. Poderia ser dito que os poetas digitais escrevem poemas com letras, não palavras, e que a "leitura" de tal poesia digital se torna um assunto de prestar atenção simultaneamente à materialidade gráfica da letra e seu valor fonético ou semântico tal como aparece em uma palavra.

Em "nurb", o poema digital que quero focalizar antes de concluir, servovalve (pseudônimo do autor-programador francês, Gregory Pignot) [13] mobilizou a temporalidade para conduzir o espectador a um tipo de prática visual — a leitura no sentido mais restrito e convencional — para outro tipo de visão prática — a atenção, ou a leitura de imagens visuais no sentido mais amplo e semioticamente menos rigoroso [14] . A obra "nurb" é realmente baseada no jogo entre esses dois tipos de leitura e os dois tipos de inscrições que correspondem respectivamente a eles. O autor questiona continuamente a distinção entre linhas que escrevem letras e linhas que produzem representações. Composto de dez secções discretas, "nurb" constitui um dos exemplos mais extremos de uma poesia digital precariamente levada até ao pólo de arte gráfica.

Alguns estudiosos poderiam até mesmo questionar se deveríamos chamá-lo, antes de tudo, de um "poema" (Não tem nenhum conteúdo "semântico" evidente). Contudo, eu diria que "nurb" é poético ao ponto de mostrar-se fascinante com a materialidade gráfica da inscrição, e com as suas mais fundamentais unidades: as letras. Isso que servovalve desenvolve é a visão de que, em seu último nível de decomposição, uma letra é um conjunto de linhas horizontais, verticais, oblíquas e curvas, e que uma imagem, no mesmo nível de decomposição, é um conjunto de letras similares a linhas, que depende das mesmas formas lineares e curvas que as letras de uma linguagem.

As três primeiras seções do "poema" - intituladas iiiii, x-liner e electrotomy —investigam a verticalidade e a horizontalidade, e o contraste desses tipos de inscrições lineares com espirais ou linhas imprevisíveis e irregulares, que sugerem profundidade em três dimensões em oposição à superfície plana de uma página. A quarta seção, carbon, abruptamente introduz outra forma de linha, uma linha rapidamente rabiscada, evocando os movimentos motores minúsculos envolvidos na escrita à mão. Porém, aqui se mostra que esse tipo de linha é constituído de nada mais que do uma representação descritiva. O espectador espera pacientemente que quatro ou cinco rabiscos enfileirados preencham a tela preta com contornos brancos, enquanto que, com o passar do tempo, eles produzem o retrato de uma face humana. Cada vez que o processo é reiniciado, as linhas começam num ponto diferente da face (e eu acredito que descrevem uma face diferente, também). Assim como os "pixels" são as unidades constitutivas de um rosto de caricatura (e, na realidade, se fitarmos bastante tempo qualquer tela identificaremos eventualmente os "pixels" individuais de uma imagem), da mesma maneira, neste caso, a linha se revela com o elemento constitutivo da representação.

A seção cinco, ohon, trabalha para fundir a distinção entre fonte impressa, letra manuscrita e formas abstratas lineares. No meio de uma tela preta, palavras que soam "farmacologicamente" — "Thoridazine", "Teldane", "Droleptan", "Quinidine", "acide aminé", "acide formique" — em "flashes", se dissolvem em feixes de luz, estilhaçando fragmentos de linhas, ou que se tornam os pivôs ao redor de uma figura ilegível, se assemelhando a uma palavra manuscrita, que vai girando. Em certos pontos, os disparos dos fragmentos de linha deslizam lentamente o suficiente para que os reconheçamos como palavras, e os feixes de luz soletram algo reconhecível. O espectador está lendo estratégias que ultrapassam limites. Não só os olhos devem passear erraticamente pela tela para fazer a "leitura" das palavras, mas o próprio ponto em que as letras ficam legíveis é um local de reajustamento, uma ruptura anamórfica, uma mudança de engrenagens em uma fração de segundo, passando a operar no que Jean-François Lyotard chamou l'espace figural (no qual encontramos imagens), para transformá-lo em l'espace graphique (onde se encontra texto) [15].

As seis seções restantes das dez (lignedefuite, go.s.cell, fil, erdro, cone82) envolvem procedimentos interativos; o espectador pode alterar a atividade ou a direcionalidade das formas e linhas arrastando o "mouse". Em duas destas seções — #8 ("fil") e #9 ("erdro"), o leitor/observador pode de fato "escrever" na tela. Quando o espectador arrasta o "mouse" à esquerda em "fil", a linha é estendida à esquerda, enquanto, em "erdro", o movimento de seus dedos é gravado como uma série de vetores irradiados desde o ponto em que começou o movimento. Desse modo, a ação de escrever (aqui, numa tela) é reconectada explicitamente ao corpo cinético do espectador. O movimento é evocado como inscrição rítmica, como o rastro da força exercida pelo corpo em uma superfície. O espectador termina por "ler" não um texto, mas os movimentos de seus próprios dedos (e, por extensão, extremidades).

Assim em obras como em "nurb" de servovalve, a leitura na sua forma tradicional é tanto solicitada como colocada em teste. O movimento linear regular e disciplinado do olho se depara com o desafio de práticas de "leitura" menos convencionais, igualmente necessárias para interpretar a tela, porém que envolvem ao mesmo tempo atividades associadas mais estreitamente com a observação e o tato. O olho é liberado de certo modo dos constrangimentos colocados nisto pelos atos tradicionais de ler. Por este aspecto, a poesia digital clama por um processo de desabilitação: "os leitores" destes "textos" estão sendo solicitados a quebrar os padrões de resposta visceral que eles tiveram tanta dificuldade para adquirir. Ainda ao mesmo tempo, a poesia digital pede um processo de recapacitação; que exige a aquisição de habilidades novas. Ler poesia na "web"— especialmente poesia criada para a "web" — fatalmente nos ensinará um modo novo de ler, e, fazendo assim, provocará um questionamento do limite entre a letra e a imagem, o olho e o corpo, o movimento e a linha.

NOTAS

[1]

David R. Olson em The World on Paper: The Conceptual and Cognitive Implications of Writing and Reading: entre nossas habilidades mais valorizadas está a capacidade de fazer uso de textos escritos, vale dizer, nossa alfabetização. A função primária da escola é dar o que são chamadas "capacidades básicas", leitura, escrita e aritmética, todas as quais envolvem competência com sistemas de notação. A despesa pública com educação é rivalizada somente pela defesa e saúde, e uma grande parte dos anos de formação da criança transcorrem na aquisição, primeiro, de algum tipo de geral de alfabetização e, segundo, em utilizar essa alfabetização para adquirir blocos de conhecimento tão especializados como a ciência e a história (Cambridge, Cambridge UP, 1994, pág. 1).

[2]

Nesse sentido, não devemos esquecer o seminal Techniques du corps, de Marcel Mauss.

[3]

Michel Foucault, Discipline and Punish: The Birth of the Prison, traduzido por Alan Sheridan (Nueva York, Viking, 1979, pág. 152). O manual que cita Foucault é Conduite des écoles chrétiennes, por J.-B. de la Salle (B.N. Ms. 11759, 248-9): Os alunos devem "manter o corpo erguido, um pouco virado para trás e livre do lado esquerdo, levemente inclinado, de modo que, com o cotovelo apoiado sobre a mesa, o queixo pode descansar sobre a mão, a menos que isso interfira na visão; a perna esquerda deve estar um pouco mais para frente embaixo da mesa do que a direita. Deve manter-se uma distância de dois dedos entre o corpo e a mesa, pois no chão se escreve com mais atenção, e que nada é mais prejudicial para a saúde do que adquirir o hábito de oprimir o estômago contra a mesa; a parte do braço esquerdo que vai desde o cotovelo até a mão deve estar colocada sobre a mesa...", etc. (La Salle, 63-4).

[4]

Os estudos antropológicos sobre a alfabetização constituem um vasto campo. O estudo estudo seminal é The Domestication of the Savage Mind, por Jack Goody (Cambridge, Cambridge UP, 1977), mas vejam-se também Orality and Literacy: The Technologizing of the Word, por Walter Ong (Londres, Methuen, 1982) e os ensaios mais especializados em Literacy, Language, and Learning: the Nature and Consequences of Reading and Writing, editado por D. R. Olson, N. Torrance e A. Hildyard (Cambridge: Cambridge UP, 1985).

[5] Vejam-se Serge Netchine, Espace de lecture et lecture de l'espace chez l'enfant, e Guy Denhière, La lecture et la psychologie cognitive: quelques points de répère, em Espaces de la Lecture, editado por Anne-Marie Christin (Paris, Centre Georges Pompidou, 1988).
[6] McLane, Joan Brooks e Gillian Dowley McNamee, Early Literacy (Cambridge, MA, Harvard UP, 1990).
[7] Veja-se também Bruno Duborgel, Imaginaire et pédagogie (Toulouse, Privat, 1992) e Serge Tisseron, All Writing is Drawing: the Spatial Development of the Manuscript, em Yale French Studies, volume 0, número 84, Boundaries: Writing and Drawing (1994).
[8] Como afirma Melanie Klein em Le rôle de l'école dans le développement libidinal de l'enfant (O papel da escola no desenvolvimento libidinal da criança) as crianças que aprendem a ler e escrever investem nas letras energias libidinais apenas dominadas (Essais de psychanalyse, introdução de Ernest Jones, traduzido por Marguerite Derrida, prefácio de Nicolas Abraham e Maria Torok [París, Payot, 1967]). Essas energias são submetidas e canalizadas, o corpo se aquieta e as letras se padronizam e assumem suas posições horizontais "corretas" à medida que a criança aprender a ler bem. Criar os caracteres legíveis de uma linguagem tem muito a ver com acalmar as energias libidinais e os movimentos dramáticos a partir dos quais se gera em primeiro lugar a representação.
[9] Stephanie Strickland, Moving Through Me as I Move: A Paradigm for Interaction, http://califia.hispeed.com/Strickland/
[10] Paul de Man, Phenomenality and Materiality in Kant, em Aesthetic Ideology (Minneapolis, Minnesota UP, 1996. Eu levaria demasiado tempo atualmente a explorar a teoria de Man sobre a materialidade da letra com respeito a obras poéticas animadas, mas é algo que espero tentar no futuro.
[11] As animações em Director são capazes de correr a 30-50 fotogramas por segundo, enquanto que o número habitual para as animações Flash é de 12 fotogramas por segundo. Evidentemente, um programa que provê mais informação visual dentro de um lapso menor de tempo é capaz de reproduzir o movimento em forma mais exata e convincente.
[12] Jim Andrews, "Nio and the Art of Interactive Audio for the Web".
[13]

O "site" do autor-programador possui informação biográfica (sabemos que é francês e que nasceu em 1971), e até nos permite lhe contactar por correio eletrônico, porém não existe nenhum nome. O "servovalve.org" é descrito como uma acumulação crono-ilógica de peças sonográficas, uma busca de outro modo de observar uma tela. Agradeço a Jim Andrews que me tenha dado o nome "real" de servovalve. Estou me referindo aqui a uma outra versão de "nurb", que foi arquivada em: http://dian-network.com/con/servovalve/index.html .

[14]

Para um enfoque do visual como "linguagem" de signos, veja-se Louis Marin, Études sémiologiques (Paris, Klincksieck, 1972). Também deve ser dito que servovalve emprega uma trilha sonora durante grandes partes de "nurb". A trilha é composta principalmente de ruídos mecânicos, sons esguichados, em jorros, ou simples frases melódicas que soam como se houvessem sido produzidas eletronicamente ou com um sintetizador. Para quem deseja conhecer o uso que servovalve faz da música, recomendarei a entrevista realizada por Jim Andrews em:servovalveportuguese.htm.

[15] Veja-se Discours/figure (París, Klinksieck, 1985), especialmente a seção cujo título é La ligne et la lettre (211-212).
O poema como objeto cinético e visual: o Nurb de servovalve por Carrie Noland
Tradução de Alexandre Venera
 
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Co-publicado em fevereiro de 2003, Nova Iorque, Rio, Berlim, Toronto